sexta-feira, 16 de março de 2012

Chuva.

Por entre os raios que caiam do céu, corria desenfreadamente contornando as poças que lhe apareciam diante dos pés. Fazia tempo que não chovia. Já tinha passado uma eternidade desde que chovera daquela maneira. As ruas eram ribeiros. As avenidas rios. As praças lagos. Finalmente abrigou-se num toldo de uma loja consumida pelo tempo, onde já ninguém ia. O odor húmido que saia pela estreita porta fazia com que a respiração se tornasse pesada e ofegante. Por entre o barulho ensurdecedor das gotas de chuva que caiam nos carros ouviu uma voz tímida dizer "pode entrar se quiser, cá dentro está mais quentinho". Entrou e, enquanto os seus olhos se acostumavam à escuridão que preenchia a pequena loja, tentou encontrar um sitio para pousar a mala que trazia consigo. Aproximou-se dele um velhote. Franzinho, com os seus poucos cabelos desguedelhados, camisola azul de lã tricotada há muito tempo e com uns óculinhos redondos pendurados na ponta do nariz. Qual avô, perguntou carinhosamente se estava tudo bem. O miúdo que acabara de chegar responde com um aceno de cabeça e com um sorriso, enquanto agarra a toalha que o anfitrião lhe estendia. Enxugou o cabelo e a face e ajeitou-se. Só então começou a olhar à sua volta: estava na oficina de um velho chapeleiro. Os chapéus de todas as cores e feitios pendurados por toda a parte denunciavam a arte do ancião, e o pó e o cheiro que por lá abundavam mostravam que não havia já quem apreciasse tal obra. Vendo o convidado tão pouco à vontade, o velho lisboeta disse "Não precisas ficar incomodado, nem precisas de ficar a fazer-me companhia por teres pena de mim. Convidei-te a entrar para te ajudar, não para que me ajudasses a mim. Estou velho e ultrapassado, tal como tudo o que aqui está dentro, já não me ligam nem ao que eu faço, e eu, sinceramente, também já não sei se me importo. O tempo passa e as pessoas vão ficando de lado, vão passando de moda, tal como os meus chapéus. São deixados de parte. Antes, quando vinha para aqui com o meu avô e com o meu pai, aprender a fazer chapéus, a rua estava cheia de gente a passear e ás compras, e de putos a jogar à bola, mas hoje, só vês pessoas de mapa e garrafa de água na mão, com as caras queimadas e com olhar de perdido. Por isso não te aflijas, não te sintas incomodado, se não ficares aqui já estou habituado a ficar sozinho". Com o olhar mais sério do mundo, com as lágrimas a brilhar no canto do olho, e com um nó no estômago, consegue apenas expelir uns sons tímidos: "Tenho muita pena que assim seja". O velho, com um sorriso triste diz "Parece que parou de chover" e vê-o ir-se embora de mala na mão. Semanas passaram até que o jovem que tinha corrido na chuva voltasse a ter coragem para se confrontar com o que tinha acontecido, e mal o fez deixou-se cair angustiado: como fora frio ao ponto de deixar ali aquela pobre alma sem mais ninguém no mundo? Pegou na mala, falou com o manda-chuva e correu: o tempo escasseava! Chegado à porta onde meses antes tinha sido convidado a entrar, nota que já lá não estão os chapéus, nem o pó, nem o cheiro a humidade, nem o velhote. Estão agora caixas e prateleiras, vai-se tornar numa loja de outra coisa qualquer, talvez numa loja do chinês, não voltará a ter a magia que outrora tivera. Foi tarde de mais.

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